As eleições e as relações afetivas
Lembro do dia em que Jair Bolsonaro venceu as eleições em outubro de 2018. Meu pai tinha insistido para eu conhecer o apartamento que ele é minha mãe haviam comprado para se mudarem. Estávamos lá, visitando cômodos e uma tensão me consumia por completo, enquanto a apuração não terminava. Até que: fogos de artifício, gritaria, comemorações... Jair Bolsonaro havia sido eleito presidente do Brasil e um desespero me invadiu. Lágrimas brotaram involuntariamente dos meus olhos e me senti completamente desamparada.
A então proprietária do imóvel, sorridente, fez algum comentário alegre sobre o resultado das urnas e eu, de maneira fria, porém educada, respondi que não era o que desejava. Naquele exato momento tive a certeza de que teríamos anos muito sombrios pela frente: o comportamento dela mudou: a atitude corporal se fechou, o tom de voz se alterou para mais ríspido e grosseiro, o olhar dela tinha ódio em mim. Meu pai, completamente alheio à situação, entrou na sala onde estávamos e disse com convicção: acabou a corrupção no Brasil!
Foi então que entendi que os eleitores de Bolsonaro eram divididos em dois blocos principais: os que pensam o mundo com os mesmos valores do então Presidente eleito; e os que acreditavam que ele livraria o país dos supostos crimes políticos e financeiros que acabaram por nos levar até esse resultado eleitoral.
Com isso claro em mente, entendi também que com o primeiro grupo não haveria diálogo e pouco me interessava saber seus argumentos: simplesmente divergíamos em todos os aspectos de como entendemos o mundo, dos valores que queremos para as próximas gerações.
Com o passar dos anos, cada vez mais ficava claro e explícito, embora ainda muito doído, que a verdade mesmo é que temos parentes e amigos com quem mantemos relações afetivas, mas no fim das contas, essas pessoas muito próximas de nós não estão preparadas para verem pobres tornarem-se ricos, assistirem favelados terem dignidade humana, não querem dividir universidades, mercado de trabalho e espaços sociais e públicos com pessoas negras, indígenas ou GLBTQIAPN+ etc etc etc.
São pessoas do nosso convívio social diário que não conseguem aceitar que esse lugar que sempre foi só nosso, também pode – e deve! - ser dos outros; ser de todos. Tipo quando você é criança e aprende que precisa dividir o brinquedo com o amiguinho, sabe? Só que estamos falando de dividir os direitos básicos, os deveres e os privilégios com todos os brasileiros.
Quanto mais passava o tempo, menos questão de se esconder essas pessoas tinham. Era comentário racista na mesa de Natal, era post transfóbico nas redes sociais, tinha misoginia correndo solta, sem falar no festival de fake News rodando em todos os meios de comunicação.
E eu não estou falando só daqueles ‘tios do pavê’, que o estereótipo imagético traz com o homem, branco, 60+, hétero, cis. Não. Eu tô falando de amigos de infância, que estudaram comigo, de primos da minha idade, de amigos do mercado de trabalho.
O período do governo Bolsonaro deixou muito claro para todas as pessoas o lado humano que eles defendem. E, infelizmente, não dá para desassociar uma coisa da outra.
Talvez esse post pareça um tanto quanto atrasado, mas como bem mostraram os eventos recentes da tentativa de Golpe em Brasília, no dia 08.01.2023, não há mais ‘Bolsonaristas radicais’, uma coisa já está ligada a outra e não tem mais como tentar defender que ‘votou em Bolsonaro, mas...’. O ‘mas’ acabou junto com a destruição dos prédios dos Três Poderes em Brasília.
Não estou afirmando aqui que essas pessoas são melhores ou piores do que eu. Mas estou enfatizando que temos valores relacionados à humanidade e à dignidade humana bastante distintos e até mesmo incompatíveis.
Isso me gerou um conflito interno gravíssimo, pois com boa parte dessas pessoas, minha relação afetiva é forte e real, por isso evitei, ao longo dos últimos quatro anos, que esses assuntos viessem à tona em nossos encontros. Passamos a sermos amigos e parentes na superficialidade, tirando fotos fofas, ganhando likes nas redes sociais, mas apenas trocando receitas de bolos que alimentam a história bonita que tivemos. Escolhi não romper com essas pessoas, até porque, de certo modo, elas não são só parte da minha história, como também de quem me tornei. E acho isso muito significativo, porque como é que ter crescido nesse ambiente, com esses tipos de comentários e de atitudes, me fez seguir um caminho tão distante do deles?
Como disse lá no início, entendi que havia uma vertente desse público que tinha uma esperança real no Brasil livre de corrupção. Foquei meus esforços de diálogo nessas pessoas, para tentar fazer com que elas enxergassem o Brasil, nem que por alguns instantes, sob meu ponto de vista. E também percebi aí que as pessoas que realmente queriam o Brasil livre da corrupção e blablabla, ajudaram a compor os 51% que ajudaram a não reeleger em Bolsonaro.
Os outros 49% ainda querem o Brasil da segregação, dos mais ricos X os mais pobres, da elite branca racista etc. Muitos deles, ainda não têm nem consciência dessa manobra social na qual estão inseridos e muito provavelmente nunca terão.
Mas mais sofrido ainda é pensar que essas pessoas devem sempre ter sido exatamente desse jeito. Nós que nunca aceitamos, entendemos, acreditamos.
Respeitei demais essas pessoas e seus pontos de vista ao longo dos últimos anos. Sou quase uma especialista em evitar o conflito, aliás. Porém, a partir do momento em que celebrei a derrota de Bolsonaro nas redes sociais, comecei a ser agredida por pessoas muito próximas e muito queridas por mim. Talvez não em palavras diretas, mas no tom sarcástico, me censurando pela alegria da minha vitória.
E foi aí que decidi que não aceitaria mais dar espaço para esse tipo de manifestação comigo. Porque dar espaço demais para se falar o que pensa sem respeitar o espaço do amiguinho é ignorar o outro como ser humano. Decidi, então, que responderia a essas pessoas, custasse a relação afetiva que fosse.
E, desde então, tenho me posicionado abertamente contra esse tipo de atitude, tenho deixado de seguir parentes, tenho bloqueado algumas pessoas, escondido publicações e assim por diante. Tenho, inclusive, evitado de encontra-las, ao menos por enquanto.
"Ah, mas isso não é respeitar a opinião dos outros". É sim: não proibi o outro de escrever asneira na Internet, apenas me privei do nervoso de ter que engolir a seco determinados pensamentos desse outro. Isso inclusive deve fazer um bem danado à relação social com essas pessoas.
Mas nada disso muda o fato de que eu já tenho a consciência real do que essas pessoas realmente pensam e quais são os valores que as movem. E isso é uma barreira que não vejo possibilidade de ultrapassar.
No fim, quanto mais consciência social, de classe, raça e gênero adquirimos, mais solitária parece a caminhada, mais difícil tornam-se as relações da nossa própria história. Porque é preciso um longo trabalho para separar nossas relações afetivas daquilo que nos tornamos e do que realmente queremos dali por diante.
É preciso buscar apoio de pessoas que se alinhem com você, é preciso um bocado de coragem para romper ciclos, é preciso força para suportar os estereótipos de que seremos as rebeldes da família ou a esquerdista dos amigos, é preciso suporte para não desistir.
Porque estar no lado certo da batalha é lutar pelo o que você acredita, mas também é estar alinhado ao que transforma o coletivo em um bem maior. É largar mão dos interesses individuais e enxergar o mundo como um todo. E quando você acredita que as minorias compõem o todo, as batalhas são diárias. E a guerra não tem fim. A verdade é que isso cansa demais, mas não dá para desistir no meio.
Então, encontre um lugar seguro e confortável para recarregar as energias, porque amanhã com certeza terá uma nova tia para você deixar de seguir no Facebook ou um novo amigo de infância com quem você nunca mais vai mais querer tomar cerveja. E quer saber? Tá tudo bem.