O silêncio que mata
Usar do Setembro Amarelo para falar de saúde mental talvez seja clichê, mas perder alguém para o suicídio não é.
Em 2014, resolvi largar tudo e passar #90doasemRoma. Arrisco dizer que esse foi o período mais transformador na minha vida. Não só pelos cenários históricos e de tirar o fôlego todos os dias, a cada esquina; nem só pelas comidas que faziam a culpa de comer sem parar simplesmente não existir; nem pela torcida ‘Gialla-Rossa’ da Roma, time do ‘cuore’; muito menos por aprender um novo idioma, que aliás anda bem enferrujado, rs.
Mas sim – e especialmente-, pelas pessoas com quem convivi e compartilhei os dias e a vida.
Conheci gente de todo o mundo e foi bastante enriquecedor aprender um pouco sobre cada cantinho. E tinha uma coisa muito bacana na escola onde estudava italiano: a mistura de faixas etárias. Porque quando cheguei lá, tinha 27 anos, mas fiz amizades com pessoas de 17, 37, 47, 57... E essa mistura foi muito gostosa, porque me obrigou a ver o mundo sob uma perspectiva de experiências de vida muito diferentes.
Foi nesse contexto que conheci Deborah, uma lindíssima menina da parte alemã da Suíça. No auge de seus 19 anos, Debbie arrancava suspiros onde passava. Não era difícil de ver os homens e meninos, de qualquer parte do mundo, que reparavam em sua beleza estonteante. Além do alemão, sua língua-mãe, dominava o francês e o italiano com maestria. Some tudo isso ao talento nato para música, sua grande paixão: habilidosa no violão, quando começa a cantar, silenciava todos a seu redor, que se emudeciam dominados pelo encanto não só de sua voz, mas do sentimento com que cantava.
Mas de todas as diversas qualidades dessa menina, que mal tinha saído da escola, que ainda nem havia entendido o fim da adolescência, a que mais tocou meu coração, foi sua bondade. Debbie era alguém do bem de verdade. Inconformada com as injustiças sociais, defensora dos direitos das mulheres sem nem entender o conceito acadêmico do que é ser feminista, debatedora feroz em prol das minorias; ela não se calava mediante aos absurdos e abusos que víamos pelas ruas italianas, e nem daqueles que contávamos de nossos países, especialmente do Brasil e Venezuela, país de grandes amigos nossos por lá.
Logo de início, percebi que ela viu em mim uma espécie de prima mais velha. Dos problemas quase infantis, como suas amigas não entenderem sua escolha pela carreira artística; às dores reais, como a ausência de seu pai, que havia se suicidado quando ela ainda era pequena, Debbie compartilhava de tudo um pouco comigo, que a escutava e a aconselhava da melhor maneira que encontrava, sempre com paciência e ternura.
Em nosso último dia de aventuras na Itália, num gesto quase pueril, Debbie me presenteou com duas coisas: um bracelete de amigas, para estarmos sempre conectadas, mesmo separadas pelo Atlântico; e um cartão, com uma pequena quantia em dinheiro, pois ela não se conformava que eu estava a ponto de partir sem ainda ter experimentado aquele que, para ela, era melhor ‘gelato’ de Roma. Abracei ela com muito afeto, sorrimos com os olhos marejados, nos despedimos e partimos para nossas vidas.
Algum tempo depois, voltei a encontra-la, aqui no Brasil, pois ela havia vindo com o novo namorado brasileiro, que morava em São Paulo. Saímos para beber, dançar, curtir. Foi uma noite e tanto. Foi uma noite de Roma por aqui, com tudo de bom que aquele período trouxe em minha vida. Ela estava feliz.
Foi a última vez que nos vimos.
Eu estava prestes a embarcar para a Itália, onde todos nós faríamos um grande reencontro, mas a pandemia da Covid-19 nos impediu. E, assim, nos separamos. E nos afastamos. E nos perdemos. E a perdemos.
Em março de 2021, quase que como num telefone sem fio internacional, recebi a triste notícia de sua partida. Deborah se suicidou naquele dia e senti um vazio imenso dentro de mim. Em parte, pela perda, pela dor, pelo buraco e pela sensação estranha de que nunca mais poderíamos estar juntas. Mas em parte pela impotência, pelo sentimento de que eu deveria ter feito mais.
Quando soube de seu suicídio, emudeci por um instante, mas percebi que a notícia, embora trágica, não me surpreendia. De alguma maneira, parte de mim sabia que isso era possível, que essa era uma alternativa real para ela. Mas essa mesma parte resolveu não dar ouvidos a esses gritos de socorro, que não eram explícitos, mas existiam. E muito provavelmente os ignorei porque não saberia como ajudar e nem o que fazer.
Debbie era extremamente atenta ao próximo e cuidadosa com as pessoas. Falhei em não perceber a tempo que este nosso mundo não era bom o suficiente para ela, que sempre idolatrou a natureza, a bondade humana, a beleza das pequenas coisas. O mundo não conseguiu retribuir sua bondade à altura e falhou com ela. Falhamos todos com ela.
Suicídio é um tabu, as pessoas não se sentem confortáveis ao falar sobre isso e muito menos sabem como lidar mediante a essa situação. Mas o 'mal silencioso' não recebe esse nome popular só por essa razão, mas também porque quem considera essa como uma saída real para sua situação, não tem com quem conversar sobre isso.
Sejamos realistas: qual seria sua reação se alguma pessoa lhe confessasse que considera tirar a própria vida?
Depois desse episódio, aprendi que um dos maiores fatores de risco de suicídio são tentativas prévias (o que, soube depois, havia acontecido com ela). Muito provavelmente, quem tentou acabar com sua própria vida uma vez, pode fazê-lo novamente SIM.
Os sinais não fazem barulho: alterações de comportamento, isolamento compulsório, abuso de substâncias como álcool e drogas.
Outro dia, ouvi o termo "cometer um assassinato de si mesmo" e isso me abalou demais, porque embora o suicídio seja isso, de alguma forma amenizamos a violência do ato. Mas é um ato de violência contra si próprio. É triste, é pesado.
Verbalizar sobre o problema talvez o torne mais real. Mas torná-lo real também torna possível a ajuda efetiva. Colocar-nos numa posição em que estamos/somos fortes, nos faz criar uma falsa estrutura, porque é fingindo força que tendemos nos afastar das pessoas que realmente poderiam nos ajudar.
Para mim, este é o ponto de virada: quando percebemos o buraco em que estamos e decidimos se pedimos ou não ajuda. Porque o ser humano se conecta na fragilidade e, no fundo, a gente sabe quais são as nossas fraquezas e sabemos que estamos sendo desonestos conosco e com todos aqueles ao nosso redor.
Por outro lado, quem está tentando ajudar deve saber de suas limitações e, em muitos casos, ajudar é direcionar o outro à ajuda profissional e qualificada. É importante saber escutar, não impor nossas verdades pessoais, não desdenhar da dor alheia, pois não dá para simplificar o problema do outro.
Mas, muitas vezes, o ESCUTAR faz muito por esse alguém. E quando eu digo ESCUTAR, quero dizer exatamente o que o verbo no infinitivo, sem conjugação e sem complemento verbal algum:
Porque os problemas não têm solução prontas e são individuais e intransferíveis. Cada um sofre daquele mal de maneira individualizada e tomam atitudes mediante àqueles fatos também de maneira única, de modo que, muito provavelmente o que eu faria em determinada situação não é o que você faria mediante ao mesmo dilema.
Deixe a síndrome de salvador de lado e ESCUTE. Claro que você pode interferir, questionar, ajudar a pessoa a encontrar seu próprio caminho. Mas não imponha soluções prontas, não indique os seus caminhos como os certos, respeite o espaço do próximo.
Todas as vezes achamos que estamos sentindo aquilo que está fora do padrão, que não é aquilo que tudo e todos esperam, nós achamos que estamos 'sentindo errado'. Mas é sempre bom lembrar que todas as emoções fazem parte da existência humana, só que algumas estão mais escondidas que outras. Talvez o tal segredo da felicidade seja aceitar que ser feliz é às vezes sentir-se feliz, às vezes sentir-se cansado, ou triste, ou culpado, ou angustiado, ou alegre ou... cada dia sentir-se de um jeito, um pouco de cada, um tanto de tudo.
Lembre-se de que buscar ajuda não é uma fraqueza, não é motivo de medo e muito menos de vergonha.
Hoje, olhando para trás, penso que gostaria de ter dado um único conselho à Debbie: busque ajuda profissional, que eu te ajudo a não desistir de tentar se ajudar.
O Centro de Valorização da Vida (CVV) realiza apoio emocional e prevenção do suicídio, atendendo voluntária e gratuitamente todas as pessoas que querem e precisam conversar, sob total sigilo por telefone, e-mail e chat 24 horas todos os dias. Ligue para: 188 /@cvvoficial