Chovia em São Paulo. A cidade estava cinza, úmida, gelada. Era uma tarde de outubro, logo depois do almoço e desci correndo as escadas da estação Consolação do Metrô, no coração da Avenida Paulista. Em dado momento, já não sabia mais se o acumulado de água nos meus olhos era chuva ou eram as lágrimas, que escorriam em uma velocidade incontrolável. Esbarrei em algumas pessoas sem nem perceber. Acho que derrubei o café de um menino. Ou não, não sei.
As imagens estão borradas, minha vista está embaçada. São as lágrimas, definitivamente lágrimas. Não sei. Se fossem lágrimas eu não deveria ter sentido o sabor salgado em meus lábios? Só me lembro do amargo na garganta.
Não percebi o volume do meu próprio choro, sentada no chão, no meio da estação de metrô, sozinha, perdida, desorientada. Aos poucos, fui voltando à realidade. O que eu estava fazendo ali? “Você está machucada, moça? ”, ouvia de longe. “Ela não está respirando, vamos chamar a emergência? ”, alguém gritou.
Talvez o tom vermelho do meu rosto fosse o meu coração despedaçado sangrando; talvez fosse a raiva, ou ainda a vergonha de ter passado por mais uma humilhação que eu poderia ter evitado.
Aos poucos, fui levantando, controlando a respiração, agradecendo a ajuda voluntária das mulheres preocupadas ao meu redor. Mas sim, moça: eu estava muito machucada. E precisava de ajuda: não havia mais como tentar sair disso sozinha, pois não conseguia enxergar a saída.
Não queria ter ido neste almoço, mas me senti na obrigação de agradar a essa suposta amiga, que usou a desculpa de que precisávamos celebrar o meu aniversário para me contar que estava saindo com ele; com o meu ele. Descobri de uma só vez que ela não era minha amiga; e que ele não era meu nada. Nunca tinha sido e... nem nunca foi.
Quando fecho os olhos e me lembro desse dia, sinto a dor física que subiu dentro de mim e tenho a sensação de que um acidente teria sido menos traumático. Sinto uma vergonha absurda, porque já fazia muitos anos que eu estava em um não-relacionamento com esse cara, que até parecia gostar de mim, mas nunca me assumia e vivíamos nesse chove-não-molha infinito, que só fazia me machucar.
O relacionamento tóxico é uma coisa muito louca, né? Você vai se embranhando numa teia de aranha, se prendendo cada vez mais, enquanto a outra parte vai esticando mais e mais essa teia para te prender cada vez mais profunda e densamente, sem que você perceba que isso está de fato aconteceu e, assim, você vai sentindo cada vez o peso da culpa por não conseguir escapar, fugir ou se rebelar.
Arrebentar a teia é muito difícil e extremamente doloroso.
Naquele dia, largada no chão sujo da estação do metrô, entendi que não conseguiria arrebentar essa teia sozinha. Voltei ao trabalho, meu chefe me mandou para casa e, ao invés disso, me vi parando em frente a um consultório médico onde eu sabia que tinha atendimento psicológico. Foi minha primeira sessão de terapia.
Esse texto poderia se encerrar aqui, comigo fazendo a campanha “se tiverem condições, façam terapia”, mas relacionamento abusivo não é algo simples de se enxergar e muito menos de se superar.
Faz anos que eu e ele nunca mais nos vimos e confesso que, até bem recentemente, eu estava me desculpando por todo mal que achava ter causado a ele: as brigas, os ataques histéricos, as ameaças em contar sobre nós para a então namorada dele (sim, eu era a outra; não, eu não me orgulho em nada disso). Será que algum dia ele iria me perdoar por todo o mal que representei em sua vida?, me perguntei isso por anos a fio.
Mas a coisa toda é que EU não fui culpada: acreditei no sentimento que via existir naquele momento, nas pequenas declarações, na química forte, nos cuidados. O problema é que não entendia que aquilo tudo não era sentimento, era só uma demonstração narcisista de poder, porque ao me levar a acreditar que eu era diferente e especial, ele me prendia. E eu me prendia a ele.
"Espero que você seja feliz", "Desejo que você encontre um homem que te mereça de verdade" e tantas outras falsas demonstrações de que deveria seguir o meu caminho, feriam meu coração, mas era só um truque, porque ele mesmo ressurgia sempre para curar essa dor, com a desculpa da "saudade", com a "vontade de estar com comigo", com o discurso de que "pensou em mim" ou que "não conseguia ficar longe" e blábláblá.
Esse jogo maniqueísta, de morde e assopra, pode parecer atraente, mas é exaustivo, desgastante e o dano psicológico é profundo. Não tem nada de romântico nisso. É cruel.
Eu me perdi completamente: não tinha um pingo de respeito e amor próprio por mim mesma. Passei a esconder todas as conversas e encontros das minhas amigas, fui vivendo esse ciclo de dor infinita sozinha. Comecei a engordar sem parar, comendo o vazio da falta de reciprocidade amorosa que me causava uma ansiedade absurda. Roía todas as minhas unhas. Não me interessava por nenhum outro homem. Me fechei numa repetição de auto-sabotagem sem fim e não conseguia mais parar de fazer mal a mim mesma, como se estivesse me punindo por não ser boa o suficiente para ele.
Por que ele não me assume?
Por que não gosta de mim?
Por que não fica apenas comigo?
O que eu estou fazendo de errado?
Qual é o meu problema?
Essas é outras perguntas permearam meu imaginário por anos e, de vez em quando, elas ainda voltam para me assombrar. É preciso estar atenta e forte o tempo todo.
Algumas pessoas podem dizer que ele não fez efetivamente nada para me prejudicar e que eu poderia tê-lo abandonado a qualquer momento. De fato, ele não nunca nem chegou perto de, por exemplo, me agredir fisicamente e nem verbalmente, no sentido de gritar ou me xingar ou coisas assim. Mas as agressões eram outras e foram muitas: me convidar para ir a uma festa na faculdade ele, mas beijar outra menina; perguntar qual o meu problema em mandar mensagem em determinado horário afinal, eu estava ciente de que ele estaria com a namorada; ou nunca me apresentar aos pais e família no geral, ou esconder nosso relacionamento de todos os amigos...
Mensagens como "odeio a gente", "com você é diferente ", "só você provoca isso em mim", "o que a gente tem é só nosso", "se de dia a gente briga...", "pode parecer que não, mas do meu jeito tosco gosto muito de você" etc. etc. etc., são a composição do clichê que permeou e controlou a minha vida por quase dez anos.
Não é fácil terminar um relacionamento abusivo. A autoestima fica tão baixa, tão desgastada, que de alguma forma essa pessoa parece ser a única alternativa que você tem.
Sabe quantas vezes EU fui embora e coloquei um ponto final na nossa história? Foram diversas, garanto. Mas ele sempre ressurgia e transformava essa história em reticências infinitas. E eu sempre cedia. Porque não tinha sobrado mais nada de mim ali, só restava ele, que em seu egoísmo absoluto, sempre voltava para me destruir um pouco mais, mesmo que de maneira inconsciente. Ou até consciente mesmo, vai saber.
De alguma maneira, o relacionamento tóxico se torna viciante para ambas as partes, e por isso se torna um ciclo repetitivo: fazer as pazes era tão, tão bom; a química entre nós era tão forte, tão gostosa; que meu cérebro desejava mais e mais dessa sensação. Com os picos de dopamina cada vez mais intensos, as quedas dessa substância também se tornaram cada vez mais bruscas e os hiatos entre esses bons momentos de tornaram fases cada vez mais longas e agressivas ao relacionamento em si, e a nós, que como viciados, buscávamos motivos para repetir a dose e encontrar aquele pico de prazer. E, assim, acabávamos nos provocando, até brigar e fazer as pazes de novo e de novo e de novo.
A reação química do organismo é inevitável, mas os danos são irreversíveis. Porque por mais que hoje eu tenha clareza e entendimento do que me aconteceu, ainda sinto medo de voltar para este lugar de trauma com a mesma intensidade com que me sinto tentada a retomar para esses local de satisfação absurda.
Existe um conceito social simplista que define a mulher vítima de um relacionamento abusivo como tonta, besta, burra etc. Além de ser uma percepção machista, é equivocada: são vários os tipos de mulheres aprisionadas em um relacionamento abusivo: jovens ou mais velhas, altas ou baixas, gordas ou magra, casada ou solteira, bem sucedidas profissionalmente ou sem nenhuma carreira, rica ou pobres. Tentar colocar caixinha para enquadrar relacionam abusivos é um erro.
Clarice Pinkola Estés fala em seu livro Mulheres que correm com os lobos que retornar para nós mesmas é um processo difícil, com tom de luto, permeado pela angústia e melancolia, causando muito desconforto. Em linhas gerais, temos que desafiar esses sentimentos e tentar voltar para nós mesmas; este é o nosso lugar, que por algum motivo nos foi roubado. Mas é nosso.
Em tempos mais recentes, retomamos o contato e, consequentemente, o padrão do abuso. Mas pela primeira vez, pedi que ele me bloqueasse de todo e qualquer possibilidade de contato, pois esse sempre será um gatilho para mim. Não nego minha participação nisso: sou uma pessoa horrível sempre que estou ao redor dele, como se o meu pior se despertasse de maneira intensiva, me tornando ciumenta, possessiva, insegura, dramática... Começo a buscar a briga, sinto o desejo de voltar para aquele nosso lugar nada romantizado. Por isso, finalmente me bloquear foi a única demonstração de respeito dele por mim. E foi - também finalmente - recíproco.
Nunca mais consegui entrar em um relacionamento real: a insegurança que me assombra é absurda: nunca acho que serei boa o suficiente para uma relação, acredito que não sou digna de ser assumida como namorada, sofro de uma espécie de síndrome da impostora em relacionamentos amorosos. Sinto que serei abandonada a qualquer momento e, por isso, a friend zone é a melhor zona: não tem erro, porque meus amigos não vão me rejeitar como amiga. E não consigo mais correr o risco de ser rejeitada como mulher. Mas esse é papo para um outro post.
Por hoje, conseguir falar sobre isso abertamente, sem vergonha, sem auto-julgamentos, é um progresso. Porque entendo que é preciso criar barreiras protetivas ao redor de si, afinal, não podemos dar mais aos outros do que damos a nós mesmas. E, principalmente, não podemos dar a ninguém o poder de nos levar de volta ao lugar de vazio onde nos sentíamos muito pior do que somos. É uma batalha diária comigo: lembrar-me de que eu me pertenço. E isso basta.
TALITA CAMARGO
Libriana. Apaixonada de alma transparente, louca alucinada e meio inconsequente, um caso complicado de se entender.
Minha vida é um grande romance de trilhas sonoras e meu caminho é de pensamentos positivos. Sempre!
É preciso muita coragem para escrever tão honestamente sobre um assunto que pode te gerar desconforto. Mas pra mim, que acompanhei alguns desses episódios citados no texto, você sempre foi CORAGEM. Só te admiro cada dia mais, Talinda ❤️