Recomeçar é mais do que voltar para o começo
Meu último texto relata uma relação tóxica que vivi há algum tempo e durante muitos anos. Mas já escrevendo aquele texto sabia que, na sequência, seria honesto falar sobre qual é o nosso papel ativo dentro de um relacionamento conflituoso. Expor-se e relatar um abuso tornou-se sinônimo de coragem, de força e de exemplo. Mas quase ninguém fala do quanto é difícil iniciar um novo relacionamento depois de ter vivido um abuso.
Acontece que essa minha experiência traumática acabou há quase dez anos e, desde então, nunca mais consegui me relacionar. Não de verdade, não por inteiro. É claro que existiu um paquera aqui, um date ali; mas relação real? Não, isso eu nunca mais me permiti. Afinal, quais garantias eu teria de que não viveria todo aquele trauma novamente?
Por muito tempo, culpei o relacionamento anterior por ser a eterna solteira. Afinal, era eu quem tinha sido abusada psicologicamente, certo? Mas de uns tempos para cá, tenho percebido que minhas ações contam muito para não estar em um relacionamento.
Tenho repetido os mesmos padrões daquele relacionamento antigo e sigo me prendendo no trauma de que tenho tanto medo de reviver.
Foram oito anos me alimentando de traições, mentiras, falsas promessas, brigas infinitas. Foi tudo tão intenso e repetitivo que criou uma espécie de carimbo, que registrou aquele como o modelo de relacionamento que eu deveria ter. Tornei isso um padrão interno, mas não tenho - ou não consigo encontrar - outra referência afetiva em mim. É como se meu cérebro e meu corpo como um todo entendessem que, para se ter carinho, afeto, desejo e prazer; em algum momento, será necessário que antes venham as etapas das brigas, ofensas e humilhações. Eu não tenho entendimento de que é possível viver a parte boa sem ter que experienciar a violência prévia. Quebrar esse ciclo faz parte de se curar do abuso. E é aí que entra minha parcela de responsabilidade.
Recentemente, trocando mensagens com um possível eventual date, ainda naquele flerte da paquera, tive um surto de insegurança bastante típico de mim – e, de novo: que era o padrão no tal relacionamento abusivo - algumas horas sem resposta e já entendi: ghosting again!! Ele me ignorou, não vai voltar! É claro que não vai ficar comigo, que não vai me assumir! Eu sabia que não era boa o suficiente para ele! Mandei 1, 2, 3... MUITAS mensagens seguidas, questionando, cobrando (???) já julgando, buscando uma briga (???) E... bom, foi um caos, né?
Ele estaria certo de me achar, no mínimo, ansiosa, para não cair nos clichês machistas de chamar a mulher louca. O que, aliás, ele não fez, sempre bom explicar. Ao fim, ele gentilmente me escreveu explicando que estava começando em um novo emprego, que não conseguia me dar a devida atenção ao longo do dia, se desculpou por isso e... Eu me senti uma completa idiota!
Mas foi aí que virou uma chavinha interna e percebi que estava repetindo o modelo do que tenho como referência de relacionamento.
E, de repente, lembrei da Talita de anos atrás, que em meio àquelas brigas infinitas, às lágrimas de desespero, enviava diversas mensagens, buscando obter a resposta que queria ouvir, ignorando fatos importantes, como horário de trabalho, reuniões, treinos e rotina da vida adulta no geral. Isso sem contar o fato de que eu também ignorava completamente a escolha óbvia dele em não me querer.
Claro que esse fato isolado me colocaria como a vilã da história, a destruidora de lares, a menina grudenta e chata. Mas o objetivo aqui é fazer a autoanálise e autocrítica a fim de crescer e ir para frente, certo? Então, vamos falar a verdade: quantas vezes EU provoquei a briga? Quais foram ocasiões em que EU ultrapassei os limites? Quando foi que EU pressionei demais?
A Talita de anos atrás não tinha essa noção e clareza na época. Mas hoje eu tenho, então, se toda ação tem uma reação, vamos à atividade prática: mandar um milhão de mensagens ao invés de esperar uma resposta seria a atitude certa? Mais do que isso: se a tal resposta esperada nunca vier, essa já não seria essa a resposta?
Aqui cabe também um alinhamento de expectativas. Não podemos esperar que o outro seja exatamente o que projetamos em nossos ideais, no mesmo timing, na mesma sintonia e tudo mais. Afinal, a vida real é... real, né? Caso contrário, vamos passar a vida vivendo o luto da perda da pessoa que idealizamos, e não de quem realmente eram.
A verdade é que tão difícil quanto sair de uma relação tóxica é conhecer alguém de forma saudável depois de ter vivido um relacionamento danoso.
Desaprender todos os hábitos venenos que você adquiriu como mecanismos de defesa naquele relacionamento ruim, é um processo tão longo e doloroso quanto sair do mesmo. Quando menos percebemos, estamos reproduzindo o mesmo comportamento pesado, rancoroso, entorpecente.
O corpo também tem responsabilidade, pois tem memória. E, por algum momento, pode parecer que só vamos nos sentir confortáveis, a vontade é com prazer novamente se repetirmos aquelas condições. Mas tudo é um aprendizado e o prazer - físico e psicológico- não precisa vir de um lugar de dor.
Mas é quando percebemos o nosso padrão repetitivo de atitudes que devemos decidir se vamos continuar nesse looping tóxico infinito, ou se vamos dar um passo para frente e escolher um novo começo, e não começar de novo.
“Às vezes a parte difícil não é esquecer, e sim aprender a recomeçar.”
Nicole Sobon
TALITA CAMARGO
Libriana. Apaixonada de alma transparente, louca alucinada e meio inconsequente, um caso complicado de se entender.
Minha vida é um grande romance de trilhas sonoras e meu caminho é de pensamentos positivos. Sempre!